
Escrita por Monteiro Lobato
— Ai, ai! — suspirou Emília. — Quem me dera ter um cavaleiro andante que corresse mundo berrando que a mais linda de todas as bonecas era a Senhora Emília dei Rabicó...
— Que adiantava isso, boba? — disse Narizinho.
— Adiantava que eu ficaria bem vaidosa cá comigo. E também poderia receber muitos presentes. Com certeza esse biscainho, quando foi pôr-se às ordens da tal Dulcineia, lhe levou algum presente.
— Levou nada — gritou Pedrinho. — De medo, quando Dom Quixote os derrotava, esses patifes prometiam tudo, como aquele patrão do Andrezinho. Mas logo que o cavaleiro se afastava, era só nomes feios que diziam contra ele e mais a Dulcineia. Se você fosse uma Dulcineia, Emília, tinha de andar com a orelha em fogo o dia inteiro.
— Mesmo assim eu queria. Podia de repente aparecer um Cervantes que contasse a história num livrão como este, e me deixasse célebre no mundo inteiro como ficou a Dulcineia.
Narizinho estalou os lábios.
— Exigente! Você já anda bem famosinha no Brasil inteiro, Emília, de tanto o Lobato contar as suas asneiras. Ele é um enjoado muito grande. Parece que gosta mais de você do que de nós; conta tudo de jeito que as crianças acabam gostando mais de você do que de nós. É só Emília pra cá, Emília pra lá, porque a Emília disse, porque a Emília aconteceu. Fedorenta...
— Isso mesmo! — apoiou Pedrinho. — Um dia eu agarro essa diaba e jogo o Dom Quixote em cima dela. Merece ficar mais chata que o Visconde.
— Por falar em Visconde, Pedrinho, como vai indo ele? — perguntou a menina. — Já sarou do achatamento?
— Está quase bom. Botei-o no torno, apertado em sentido contrário à achatadura. Está endireitando, mas acho que vai ficar meio quadrado, perdendo aquele redondinho de sabugo. Pena é que esteja mudo. Não sabe mais nada, não fala nada.
— É que com a espremedura a ciência dele saiu toda — explicou Emília. — Não viu aquele caldo que eu guardei no vidrinho?
— Essa está de bom tamanho! — exclamou Pedrinho.
— Ciência líquida! Só mesmo você poderia descobrir isso. Ciência não é coisa sólida, nem líquida. Poderá ser gasosa: um fluido, um gasinho, como alma de pessoa.
— Pois a dele era líquida — tornou Emília. — Já fiz a experiência e vi que o que está no vidrinho é ciência pura. Pinguei um pinguinho numa formiga, que imediatamente ficou científica.
Dona Benta, que estivera a ouvir a prosa, interveio:
— Chega. Vocês estão hoje mais asneirentos do que nunca. Parece que a doença da Emília pegou em todos.
— Mas a senhora acha, vovó, que pode haver ciência líquida? — insistiu o menino.
Dona Benta ergueu os olhos para o céu.
— Pois, sim — gritou Emília. — Nos livros a gente lê constantemente coisas assim: "Uma questão líquida", "ponto líquido", "assunto líquido". Ora, se uma questão, um ponto ou um assunto podem ser líquidos, por que a ciência não poderá ser também?
Narizinho tapou com a mão a boca da Emília para que Dona Benta pudesse continuar.